Sidnei Moura
O célebre escritor Jorge Luis Borges, patriarca das letras argentinas e um dos mais eruditos autores da literatura universal do século XX, reputava o futebol como exemplo de declínio cultural da humanidade ao ponto de afirmar que o futebol era "um símbolo da degradação social". Considerava o esporte como "esteticamente feio" e durante a sua vida fez inúmeras criticas a modalidade esportiva preferida por argentinos e brasileiros. Apesar de toda sua repugnância ao que chamava de uma ideia de "supremacia de poder" horrorosa, Borges produziu em parceria com Adolfo Bioy Casares um primoroso conto ficcional onde o esporte das massas é representado como pano de fundo em uma série de acontecimentos espetaculares, onde uma franca discussão sobre a questão da percepção da realidade é abordada.
No conto "Esse Est Percipi” (Existir é perceber), Borges e Bioy apresentam uma intrincada narrativa onde a vida de um torcedor de futebol é acompanhada a partir do momento em que ele se dá conta de que o estádio Monumental de Núñez - o estádio do tradicional clube River Plate, desapareceu. Ao tentar investigar o que aconteceu, ele descobre que o futebol já não era praticado em Buenos Aires havia muitos anos, e tudo o que ele sentira como real era invenção dos narradores, da TV e do rádio. “Os estádios já são demolições que se caem em pedaços. Hoje tudo se passa na televisão e no rádio. A falsa excitação dos locutores nunca o levou a pensar que tudo é mentira? A última partida de futebol que se jogou nesta capital foi no dia 24 de junho de 1937.”
Enquanto lia ontem a noite esse primoroso conto de Borges e Bioy, passei a pensar por um momento sobre o atual sistema de coisas em que a sociedade brasileira está inserida, e percebi que, na busca frenética de um povo por aquilo que defina sua identidade, por muitas vezes nos deparamos no meio do caminho diante de situações que parecem lutar pelo estabelecimento de uma "cultura" de negação da realidade no futebol, nos meios de comunicação quanto também na política, uma luta desenfreada por aquilo que consequentemente culmina com a subversão da verdade.
Ora, apesar dos péssimos resultados da seleção brasileira na Copa do Mundo televisionada para todos os cantos do planeta, lá estavam narradores e comentaristas na TV, no rádio e demais meios de comunicação em massa elogiando a cada fim de jogo a "estupenda" atuação da seleção em campo, bem como os próprios cartolas que, no fim de tudo à despeito do reconhecimento da torcida, preferem insistir em negar a realidade com as declarações "Nós jogamos bem", "não fizemos um jogo ruim" e "não vejo como criticar a seleção hoje". Na política, enquanto a economia patina provocando ainda mais exclusão social, lá está o governo nos meios de comunicação afirmando que tudo está muito bem, embora pelas ruas e recantos de todo o país milhões expressem seu descontentamento com a elevação continua dos preços dos alimentos como resultado de uma inflação que já superou o teto estipulado pelo próprio governo onerando ainda mais o apertado orçamento das famílias mais pobres. Ao subverter a realidade a fim de torná-la imperceptível para as massas, subverte-se a própria verdade da realidade.
A luta contínua pela exibição para as massas de uma "saga heroica" que não condiz com a realidade tanto no futebol quanto na política na sociedade brasileira , não perceptível pela maioria, é uma realidade que pode ser afastada no mundo real. Evidentemente em campos opostos, a mediocridade dos governantes e dos meios de comunicação de massa é muito mais devastadora do que a mediocridade dos cartolas e das grandes corporações esportivas, porém todas podem ser sintetizadas nesse aspecto em uma única máxima de Borges sobre o futebol: “O futebol é popular porque a estupidez é popular”. Embora não tenha o mesmo ponto de vista de Borges sobre o futebol e ainda acredite que os meios de comunicação, o futebol e a política são capazes de oferecer condições de progresso quando levados a sério, penso que apenas a condição para a percepção nítida da realidade é capaz de propiciar o afastamento de forma gradual da estupidez que insiste em se estabelecer como dado cultural na multiplicidade de faces de nossa identidade como povo, nação e civilização.
Percebo, só assim de fato, existo.
* "Esse Est Percipi” de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares é um dos contos publicados na obra "Cronicas de Bustos Domecq".
Sidnei Moura é licenciado em Letras e professor de Língua Portuguesa e literatura. É editor do blog Sidnei Moura, filiado à UBE - União de Blogueiros Evangélicos, e reside em São Carlos - SP
Facebook: sidnei.moura | Twitter: @sidneimoura
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